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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Jean D. Soares conversa com Virgínia Mota: sobre Biblioteca de Afetos



JDS_ Uma primeira boa pergunta: o que é a Biblioteca de Afetos (BA)?
VM_ Em maio de 2009, a BA começa por ser uma vontade de ver um novelo de linhas em movimento, por um lado a potenciação de um lugar de encontros e gestação de pensamento e na última instância um exercício de liberdade, em um espaço onde existiam pessoas sem livros. Entendido que os livros são uma espécie de motor que impele do individual para o todo, esse fio que se tece, era preciso estimular a extensão dele, fazê-lo e senti-lo. O afeto, como o gesto artístico está sempre no "entre", na brecha, ao mesmo tempo, na eminência do perigo, no risco, daquilo que não se controla, dando conta de uma teia onde os seres circulam, ainda que inconscientemente. Há interesse tornar visível, ou sensível, ainda que invisivelmente, esse tecido. Parecia também que, se havia a necessidade de uma Biblioteca, ainda que pequena, seria sempre num gesto de reorganização (resgatando aquilo que já existe no mundo e a propriedade de multiplicação). A pergunta era como, porquê e quais seriam esses livros que comporiam essa Biblioteca? Aprofundando essa questão a resposta já havia sido dada no óbvio: um livro, um autor, um leitor que doa e o futuro leitor, todos compõem essa biblioteca, é daí que se juntam os livros recomendados por um doador que o coloca na BA como gesto compartilhado, pelo grau de importância, numa inclinação afetiva. Posteriormente, esse movimento se torna no indizível a junção de várias camadas de relações que vale a pena se pensar. Nesse sentido talvez a BA tenha começado anteriormente.  
Eu havia deixado Portugal e a minha biblioteca, trazendo para o Brasil um único livro, dolorosa experiência já que esta adormeceu aí longínqua devolvendo em dobro a sua relevância- um sentimento de amputação que talvez me tenha esclarecido a consciência de sua dependência por um lado, e o meu profundo respeito por aquilo que os livros permitem- o tom confessional do pensamento decorrente das conversas íntimas que se escuta entre as páginas e a clarividência das horas “em que se é aquilo que se é”, a matéria desvelada pelo silêncio da leitura_ em um período de proficiência incrementado pelo de auto-suficiência.
Há uma dignidade escrita e reinventada com as palavras em um livro. Havia que ver renascido isso, nas crianças que conheci nesse lugar e que estavam na idade das primeiras palavras lidas, apreciar com elas outro tom sobre seu futuro, longe de qualquer missão, informação, simplesmente almejando uma certa subjetividade. Reuniram-se assim os primeiros 100 livros que viajaram desde Portugal, 100 autores, 100 doadores (que podem um dia reler ali o seu livro_ uma parte de cada pessoa doadora desloca-se já geograficamente), quantos futuros leitores? BA é esse manto composto. 

JDS_ Por que seriam motores os livros?
VM_ Os livros contêm já um motor que faz mover as palavras, quer no interior de si mesmas quanto entre elas, tanto o arquivo imagético possível ativado em cada leitor, então recriam linhas de fuga, curvas de nível, desvios, bifurcações, entroncamentos _na contra-capa de um bom livro inscreveu-se sutilmente: leia de novo, não pare.
A BA é uma espécie de fino tecido de linho (leve e maleável, uma vez estendidas as suas qualidades, e em termos de reorganização ou imbricação na natureza), ou seja, um plano re-desenhado e sustentado por imensos fios, sendo tecido por um motor conjunto cuja força motriz é o afeto (estrutura e corpo orgânico, não-maquínico). Todo o motor está entre uma relação de forças cuja atividade vital depende de uma dedicação física e mental, a propriedade do tecido depende da comunhão entre o que está tecendo e o corpo tecido. A BA vê ao longo de sua reorganização primeiramente a relação mais direta, a do próprio livro enquanto objeto: o que vai de um autor ao encontro com seu “leitor”, primeiro e último (porque todos juntos fazem outra espécie de olhar sobre o objeto, e esse olhar interessa bastante).  A BA torna então visível um rastro entre dois leitores, que se cruzam num intermédio (objeto_ desejo/participação afetiva), depois disso reúne-se uma conjuntura de leituras e nelas a capacidade de ação em espessuras de possíveis. Numa relação a nu, posta a descoberto (porque é partilhada publicamente e ainda em movimento), torná-la fisicamente presente, em um lugar (e não bastaria ser mais um lugar chamado de Biblioteca, onde livros pousam no silêncio dos tempos), notando que a realização dos livros é a circulação, sua concomitância na ocupação de territórios, sempre atingindo espaços de maior democratização, ela vai até onde quer ser recebida, e assim pontua um mapa afetivo, digamos: reside aí sua vocação.

JDS_ Sendo motores, o que faz dos livros um fio que tece encontro e pensamento no exercício da liberdade?
VM_ Ter nas mãos um livro que foi lido por alguém, um outro que não eu, escolhido e partilhado, interliga dois focos de atenção iniciais e soma sempre a cada dois, complementando um triângulo (quem escreve, quem lê e doa, quem lê posteriormente). Talvez esse triângulo venha a ser a base do próprio afeto no intermédio de um objeto, uma espécie de desenho de seu “DNA”. Não existimos sem o afeto e somos livres com ele, se o sentirmos e colocarmos em deslocamento, ele dar-nos-á distâncias e concretudes díspares de um entendimento geral para um centro específico de onde derivamos. Fazer desse deslocamento um movimento maior é um desafio ao ser. A liberdade reside no ponto em que se sente uma chamada para aumentar adentrando, como uma pergunta em lugar de uma resposta, o ponto específico de latência e não dormência ou atávico. O afeto não tem resposta, ele dialoga e impulsiona o momento a se tornar verdade e destrói aspectos passionais que não se refiram diretamente a ele. Pelo modo como entendo a definição de “afecto” em Spinoza, diria que a duração vem do afeto, ele faz durar e por ele, as coisas que amamos (em verdade e não convencionadas), as outras são “moda” que sucumbem a cada passagem. O objeto da arte dá conta disso na duração: conceitos reinventam-se, afetos conservam, (tecem na duração).

JDS_ Até que ponto os livros são motores que nos impeliriam do individual ao coletivo?
VM_ Todo o ser vivo é um ser coletivo e nesse sentido toda a arte é um ser vivo.
Muito dificilmente alguém algum dia deixará de encontrar um livro pelo qual nutra algum afeto e a primeira vez que tal ocorre torna-se inesquecível, é necessário que isso aconteça, uma afinidade com uma entidade humana exterior ao nosso âmbito pessoal de relações. Há um diferencial, um deslocamento pessoal que ocorre na duração de uma leitura (uma escuta). A BA promove diferentes tipos de deslocamento, opta-se chamá-los de encontros.
Muitas pessoas conhecem unicamente livros escolares e outras não foram à escola, (a pergunta é: porque só isso chega até elas como obrigatório?) as nossas oficinas/encontros em torno dos livros vão além disso, das leituras em voz alta ou baixa,  exploram-se todos os lados de um livro, aqui, porque esse objeto já almejou o seu momento com alguém anteriormente, esse é o pressuposto que aumenta seu valor, parece. A resposta estará talvez nos “entres”, entre dois, existe um lugar à disposição para explorar vários exercícios, outras linguagens, ou saberes, até mesmo gerando contradições: é a vocação da BA existir nesses hiatos, fazer notar, mapear as aparições dos “entre”, como um escorrimento de água, um caudal que acha novas fendas até desaguar numa corrente maior. O todo merece coletivos diversos e divergentes, fazem parte do mesmo mundo. A concepção ou a identidade se dão em processos de contradição, o leitor deixa de ser passivo (em certo sentido nunca o foi, ainda que se decida por uma não-ação) para ver-se uma outra vez. Por uma proposta específica de abertura dada por outrem, ruptura ou simplesmente ao ocupar-se de si mesmo, o leitor faz algo por relação a um objeto, oferecido por um outro desconhecido, que hipoteticamente se dirige a ele mesmo, em um livro, onde reside agora sua dedicatória. Esse movimento é singular, e eterno quando se torna coletivo. Não se dirige o afeto em relação ao afeto do outro mas junto com um objeto que diz de si, um indicador e uma nova pista afetiva. O movimento do afeto encarna, descarnando, pela mudança do olhar, no seu deslocamento. Sobre o espaço entre os livros, é preciso dar conta dele primeiramente e também esclarecer-se sobre que conceitos, porque nem sempre os de outrora bastarão agora. Há que reinventar as leituras, e as palavras somente não dão conta de tudo, mesmo assumindo que elas não se esgotam. Palavras não nasceram para se cristalizar, mas para o negócio, elas fazem parte do movimento-transformação, e ao mesmo tempo são mudas. Talvez por isso bibliotecas representem ainda silêncio (mudo), agora, o silêncio gerado em redor de um livro é já outra coisa e sobre isso talvez se possa fazer algo e já não falar, sobre o silêncio que deixa de ser mudo para ser silêncio revelador.
Nos intervalos das palavras, nos silêncios reveladores de silêncios, aparece aquilo que tem que aparecer.

JDS_ os afetos e a percepção do leitor relacionam-se de alguma maneira no espaço da Biblioteca? Qual é o gesto artístico do afeto no interior dela?
VM_ O afeto, como a obra de arte, é um ser vivo que se alimenta no próprio ser vivo e é assim que vejo a BA.
Recentemente conversei com alguém que havia visitado o meu país, cujo olhar incrédulo perante o visionado em viagem, contraposto ao conhecimento prévio, não se havia alterado, ou seja, no século XXI essa pessoa avistara somente os séculos antecedentes (pelo que havia lido dessas épocas). Inicialmente isso irritou-me, ri-me imaginando que este havia entrado em um avião e se deslocado em décadas, posteriormente perguntei-me se o conhecimento havia turvado o seu olhar, ou se, a verdade contida nas suas palavras não seria a verdade para ele e mais relevante do que aquilo que ele efetivamente contatara e não processado por mera exclusão de um desinteresse pessoal. Considerei ser criativo e curioso conversar com alguém que avistara o passado com seus olhos de agora. É “verdade aquilo que inventamos” dirá Manoel de Barros, que a poesia dá-nos verdade espacial entre as palavras e, no movimento proposto, um país é aquilo que o olhar diz que é. Sobre esse deslocamento e pensando em um mero exercício descritivo, dir-se-ia: um país é também aquilo que se descreve que ele é, a palavra é todos os países em todos os seus tempos indiscriminadamente; é além do que vemos, do que sabemos dela, o que se projeta diante do que esta faz sentir, o que nasce entre várias imagens divergentes em acordo de forças ou por linhas de fuga, mas sempre compromissadas e sempre sendo já uma outra coisa. E aí seria ser a própria coisa; um jogo de criança em W.Benjamin, devir mulher em G.Deleuze, uma incorporação da barata em C.Lispector, numa simples colocação do espelho na sala como viu V. Woolf: “nada permaneceu igual durante dois segundos”. O gesto sublinha afeto. A palavra é contida.

JDS_A biblioteca seria o espaço no qual estas intercessões apareceriam, partilhadas, enquanto livros, promotores de uma reorganização dos nossos afetos?
VM_A BA será uma espécie de promoção do deslocamento do que está já diante de nós_ no mundo. Ela redesenha como uma arquitetura que é conjecturada ou subjugada por linhas de força, construída unicamente para desembargar um movimento sem conteúdo estável, mas por onde este flua. Ela quer fazer durar fazendo transcorrer aquilo que dentro dela se transmuta e dá a ver_ ela quer cuidar e projetar-se como afeto-sustentável.(risos)

JDS_ O afeto pode ser entendido como essa intercessão entre o eu e um outro na qual circularíamos, dada uma simpatia inconsciente?
VM_ Pensemos na fala, como um exterior afetivo(da palavra dirigida entre pelo menos dois), durante muito tempo pode explorar-se a ferramenta “fala” como um brinquedo novo ou um jogo, depois dar-se conta que não seja assim tão necessária, que o uso excessivo esgota assim como cansa as próprias palavras, não dando conta do seu modo anterior, daquilo que impele. As palavras são uma espécie de patrimônio, o primeiro “brinquedo preferido” que permite achar o mundo diferente inúmeras vezes: onde se apontam tantas formas de apalavrar sem falar, descobre-se ainda que nem elas dizem tudo nem “eu” deva ser necessariamente o veículo próprio da fala e que se pode recriar objetos que desenvolvam as suas próprias falas internas, algo mais próximo ao tempo anterior e interior que as projeta, ou seja, mais próximo ao afeto em si. Há uma certa incompreensão das palavras por causa da fala, que gera uma urgência pelo silêncio, da não-fala, e a preciosidade da escuta no processamento do próprio pensamento das palavras. As pessoas demoram para se entender e se cansam, talvez por não se escutarem nesse processo, ou seja, no pensamento por cima e por baixo do texto que veiculam. Esse silêncio requer um processamento lento, sem os imediatismos do afeto que se quer exteriorizar rapidamente, por se treinar mais a fala que o uso potencial da palavra, talvez se acredite por isso realizar dentro dela e aí surja sua frustração.
“_Como quer que corte seu cabelo?_Em silêncio.”, contar-nos-ia Plutarco. Não seria necessário falar, mas ler: escutar o pensamento em silêncio. A arte pode ensinar, a não acrescentar mas retirar do mundo suas linhas de excesso, a fala em geral é uma excentricidade, um ruído, uma parafernália de caracteres e informações menores, poluentes. Como trabalhar retirando essas roupagens e sobretudo como articular essa experiência com outros? Em simplicidade, escavando. Agora, podemos escavar acompanhados, só que ninguém escava em lugar de outro. Esse processo coletivo é ainda mais lento mas possível.
Talvez o objeto belo ou sublime seja esse com o qual perdemos a fala e que exibe certa intangibilidade. Onde se reinventa o silêncio a cada tempo, tempo único capaz de definir a obra e apontar o afeto. A BA propõe lidar com o afeto como veículo para um adendo reflexivo, pessoal e coletivamente.

JDS_ A Biblioteca no silêncio dos tempos - dos livros em silêncio - é diferente de Biblioteca de Afetos - dos livros - motor. Você entende "que a vocação dos livros é a circulação e uma ocupação de território sempre em espaços de maior democratização". Como se dá a elaboração dos mapas afetivos dada a vocação dos livros - motor?
VM_ Um coletivo é já um mapa e teria que se incluir nele também o silêncio. Expressando-o assim rapidamente, diria que o silêncio pode ser atávico ou aquele que importa aqui: revelador do afeto, (talvez ele seja a sua linguagem, de onde nascem todas as coisas e daí distinguindo-o da fala, a mais célere, até chegar em todas as outras mais lentas, ditas artísticas). A BA lida bem com o silêncio que aceita como base para todas as ações decorrentes, ao mesmo tempo que perfura todas as outras bibliotecas que moram num silêncio incapaz. O momento é decisivo. A maneira como se faz notar esse silêncio. Há um silêncio mórbido em certas bibliotecas como se nada pudessem fazer, não o mórbido que vem do medo de morrer mas da suspeita de estar morto. Nelas estão forças que podem muito e são essas que precisam se libertar. Fazer acordar o espírito desse adormecido, ele depende de nós e nós dele.
Muitas bibliotecas reviveram seus espaços pós-internet e atingiram públicos maiores. Com a rápida democratização de acesso ao computador talvez valha a pena analisar a provável diminuição desses visitantes antes de voltar ao silêncio dos tempos. Vive-se um tempo em que as pessoas acreditam que tudo quanto precisam ter enquanto informação está na internet, que liberdade. O que fazer então com o tempo que sobra, com o que se poupa à procura de informação e o que fazer com os livros reais? As escolas que se viam numa demanda informativa precisam se repensar futuramente. O entendimento da disciplina mental, articulada, fundamentada pela procura do conhecimento talvez exija agora outra natureza, mais laboratorial. Precisa-se reinventar escola e biblioteca, juntas, absorvidas pelo afeto, o que sempre resta_ e a sua cultura_ reinventando-a, aqui e agora. Esse é um mapa bem maior, o do porvir.
Há que saber sentir aquilo que dura e restituir ao sublime a sua eminência para o acontecimento: a arte, a  dos livros, e até aquela que nasce das pedras.

JDS_ Ouço as palavras finais e me inquieto. Por que deveríamos buscar a informação desenfreadamente? Ou, qual é o fundamento de sua busca?
De fato, nossa civilização alcançou determinadas camadas por postular a angústia do conhecer, arrebatadora e charmosa, aclamada por tantos, nomeada como Filosofia. Com a virada dos séculos, o nascimento e configuração de uma ciência, a pretensa segurança desses caniços pensantes parece ter sido assegurada: a medicina “salva” vidas, a engenheira nos “leva” a qualquer lugar, a ciência “progride”. Mas ainda morremos e não sabemos (talvez nunca saibamos) até onde poderemos chegar. Informação para quem? Para quê? Para progredir? Progresso para quem e para onde? São linhas de excesso as que afirmam o progresso e esquecem que, finito, o homem tem seus horizontes limitados.
Em tempos de ambientalismos, perguntamo-nos sob sustentabilidade, sobre a necessidade de subsistir aqui, de manter a possibilidade de vidas por vir. Todo tempo, você fala de silêncio. Diferentes silêncios. Até aqui, são basicamente três: o silêncio mudo, passivo e morto de espaços infinitos que apavoram; os livros-motor nos conduziriam a um silêncio revelador que em outro momento da conversa parece com um silêncio ativo - espaço de circulação de subjetividades. Pensando nesse cenário, quais as possíveis consequências dos afetos-sustentáveis para a subjetividade de quem passa pela BA? E, o que torna a BA enquanto obra de arte, um objeto que questiona essas linhas de excesso, a se tornar linha de fuga, pista afetiva em meio ao terror linear e excessivo do progresso?
VM_ A informação é uma espécie de guarda-chuva, um filtro, e o que as pessoas procuram nem elas sabem ao certo, acreditam precisar de guarda-chuvas protetores, e não se pode falar em nome de ninguém. Parece que na maioria das vezes há que se dar conta de demandas específicas, controladas por um organismo não pensante e genérico, porém dominante. Todos os erros hoje são defendidos pelo “sistema”, ele se move no “erro” e talvez seja esse o seu principal motor, aquele que importa ver sempre com muita atenção. Enquanto alguém se ocupa numa resposta, uma ou mais perguntas ficam por se fazer sobre e subsistema. Ora, se o movimento-mundo, aquilo que o desvela são outras questões, alimentando um afunilamento destas, a experiência é aglutinada em uma espiral de desaparição, que apaga tudo e todos; quaisquer linhas de força que não sustentem respostas objetivas ficam omissas no sistema da informação, tudo deve ser apagado rapidamente já que não conseguiríamos conviver permanentemente com o próprio erro.
A BA quer ser exercício de questionamento sobre um substrato no silêncio dos suprimidos, dos espaços de sensibilidade sobre o visível mesmo, trazer elementos que intervenham nessa espiral e a possibilidade de ela ganhar outra dimensão, não necessariamente uma espiral mas diversos fios orgânicos, rizomas, desenhos subjetivos, sem finalidades à priori, das individualidades encobertas nos seus afetos.
O progresso defende unicamente as indústrias e estas pensam em grupos de pessoas, sistematização, números, ora, não dão conta do indivíduo, do pessoal, inclusive talvez por isso vivamos em um tempo onde o avanço das ciências ainda não deu conta da cura, mas tenha traçado unicamente um mapa específico de doenças e sequer “da doença”. Há que reverter isso no campo político que atende em uma diretriz, num único fio_ como um filho de pai autoritário e manipulador. A política não pode ser refém da doença, mas da cura.
Em exemplo, a política de estado hoje, não podendo atear-se à indústria alimentar (que em verdade é o principal causador de morte no mundo dito desenvolvido) havia que justificar-se, responsabilizar-se sobre esse problema. Cada um fica com a função de alimentar-se individualmente mediante a oferta possível no mercado dos alimentos, que se complementa com o farmacêutico. Acontece então abandonar-se a fonte, a origem do problema condenando a agricultura ao ostracismo.
A cura não é programa de vacinação, ou policiamento, vigilância pública ou sistemas prisionais. A democracia merece mais do que aquilo que projetamos para ela, ela carece de espaço de ação, de liberdade subjetiva e lugar de encontro de si mesma em relações desmedidas.
A lei precisa se reescrever a cada caso e esbarra-se nessa impossibilidade efetiva, em ter que dar conta desses guarda-chuvas individuais, em sistemas criados sob um olhar perfilado em hipótese para cada um como um grupo. A qualidade ambiental só será depurada em um ambiente humano individualmente sanado, talvez se faça necessário inventar outras formas porque essas conhecidas não respeitam toda a natureza daquilo que a lei pretende mapear. Caberia então à política dar conta daquilo que está entre os homens e não destes literalmente enquanto objetos dispostos nos campos assinalados.
Parece que existe uma espécie de nostalgia afetiva pela solidão, do silêncio de estar sozinho e uma incapacidade para tal, (a BA é uma chamada de atenção para isso), as pessoas não conseguem estar sozinhas e também nos coletivos elas não existem, os diálogos são constantemente interrompidos por ruídos maiores. Então, o estar, o ser sozinho em um grupo precisa ser vivenciado, gesticulado, exercitado, personificado ou mesmo exorcizado, no silêncio do acontecimento, e só ele pode reinventar o grupo em si. Há um esgotamento pela falta de visão, o olhar existe e não enxerga, acredito que ele anseia por um deslocamento pungente a cada instante (a arte é um poder sobre o deslocamento).
Vejamos, o sonho anual de cada pessoa é sair de férias e descansar, entram em sites ou em agências de viagens e compram paisagens em pacotes; pequenas parcelas de paraíso (sem ninguém), no fim chegam lá e deparam-se de novo com a multidão. Essa multidão, o excesso que esgota o lugar, vence imediatamente o paraíso, não o venderia enquanto imagem, mesmo sabendo disso na hora da compra, por um ínfimo momento, os “clientes da promessa do paraíso” acreditam que este existe e que é seu, não seu por direito mas como produto que podem e querem comprar: o ser sozinho na paisagem. Esse ser “sozinho na paisagem” é um bem permanente, um não-produto, inconscientemente as pessoas apreenderam-se numa multidão e não conseguem libertar-se desse fato embora se queixem como vítimas deste, diariamente. Na proliferação das “ciências esotéricas”, seitas religiosas, certas substâncias químicas, tenta-se reinventar essa promessa, mas elas existem debaixo dos mesmos guarda-chuvas. Nota-se certa tendência para circunscrever a experiência humana em currais, toda a hora se reinventam cercas e vende-se a promessa de uma existência fora delas. Há que fazer valer-se extrinsecamente um movimento de existência, em silêncio, porque fora dele o perigo de virar produto é enorme e rápido, o silêncio é contrário à instrumentalização de circunscrição, se ele deve tomar alguma forma então que seja uma fugidia e sagaz, que crie sua própria metodologia e isso, digamos, é processo de arte. A arte acontece fora dos mercados e precisa se imbuir em outras fontes que nada têm que ver com as chamadas indústrias criativas; “empresas” precisam da arte mas não a entendem, precisam de afeto mas tendem a ignorá-lo, neutralizam higienicamente seus espaços. Há que criar modelos indisciplinares que ao serem replicados sejam já outra coisa, um movimento outro que viva de intermédios, indefinições que multipliquem as suspeitas sobre o mundo.     

JDS_ Quando propus a pergunta sobre o que fazia dos livros, enquanto motores, fios que tecem encontro e pensamento no exercício da liberdade, a relação entre o tecer do encontro e a possibilidade de pensar ficou clara. Não aparece, no entanto, nenhuma resposta, positiva ou negativa, sobre o possível lugar da liberdade nesta relação. Surge aqui esta resposta quando passamos a pensar na BA como atividade criadora, obra de arte, linha de fuga, ser coletivo, lugar que cria e nutre um afeto-sustentável e, ainda, via de expansão das subjetividades?
VM_ Diria que, e para expressar rapidamente, à superfície, relações aparecem como limitações, afetos são vistos como constrangimentos e os processos criativos como anteriores às linguagens. De forma mais refletida, parecem indicar um método para ser sem “livro de instruções”. Teríamos que ler todos os livros escritos para compreender as incoerências de uma existência sem programa? Em um século incoerente ganham aqueles que notam seu espaço de liberdade efetivo: no ser incoerente, reflexo devolutivo de falhas e aí poder realmente ser. Sobre as fissuras haveríamos que agir antes de falar. O ser anterior manda mais mas só sobre um espaço de consciência individual para com o todo. As subjetividades são apenas uns portais de acesso às perguntas sobre o homem no exercício de si mesmo. A BA no seu todo será só um lugar de passagem reflexiva, indicador despretensioso de profundidades reveladoras na diversidade do ser quem é.

1 comentário:

  1. Precioso texto e tecido reunido pelos fios dessas reflexões entre - arte e entre - afetos. A descoberta da qualidade do entre - do espaço transicional - que se justapõe entre um artista propositor; escultor de espaços e relações de sentidos. O livro como motor implica em uma necessidade de pneuma - óleo da alma - sopro da leitura como impregnação de temporalidade e subjetividade - qualidades fundamentais da vida. a Biblioteca de Afetos é sim, uma escultura transicional para interações de estados de alma.
    LG Vergara

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